sexta-feira, 29 de junho de 2012

Tamanho 38-39

Era um sapato caladão e bege, mas era confortável como andar de meia anti-derrapante. Nunca deixava tropeçar, era atento às necessidades dos pés. Teve um dia que decidiu atender aos seus impulsos. Adorava poças, mas nunca se atrevia, nesse dia ele resolveu se lambuzar na lama como se não houvesse amanhã. Esqueceu das meias brancas, das frieiras, parecia que era só ele e todo aquele marrom pastoso, pingos para todos os lados. De poça em poça curtiu todas as águas que pôde. Se entregou à imprevisibilidade das enchentes, fugiu das calçadas secas, do descanso da cadeira. E quando chegou o sol, seco, ele teve certeza que aproveitou o mundo com tudo o que podia, de nada mais precisava, nem de pés, nem de caminhos. Guardou-se feliz.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Estreiteza


Vivia numa quase-vida, amava sempre um quase-amor.
Se cansava quase-sempre, planejava uma quase-fuga.
De noite ela quase chorava e esperava o quase pavor ir dormir.
Meio que sonhava, meio que partia.
Quase nunca a inteireza.
Quase nunca o desvelo.
Quase nunca o ardor.



domingo, 10 de junho de 2012

Ausência

Aquele sol fraco de fim de tarde poderia me completar, pensei. Vou me arriscar na noite.
O outono me permite o aconchego das cobertas e do açúcar, mas ainda há muita ausência ao meu redor.
É tudo melancolia - na grama verde molhada de chuva - por onde eu passei apressada naquela manhã.
Não saberia dizer se tinha alguma parte seca em mim, eu era só tempestade. As gotas eram fortes e doídas como boas lembranças que a gente acha melhor esquecer porque o futuro não foi bom.
Não foi pelo fato ou pela rejeição. Chovi pelo desamparo, pelo despertencimento, o descuido, as mãos desenlaçadas bruscamente. Acho que rapidez sempre me assustou muito. Lenta e gradual, sempre me fere o tempo.
De repente eu quase tropecei naquelas palavras, após minha quase queda, pedi sem brio:
- Não faz mais isso não, não quero cair... não agora.
Mas naquele dia, ignorei todos os indícios, calei minha intuição gritante, não reparei no visível ... fez-se a queda. Assustada, não me interessavam as circunstâncias, tremi por raiva, medo ou descrença, assim como uma criança que chora ao perceber que existe o olhar do outro, foi vergonha também. E desilusão. 



"É no espelho que eu vejo a minha mágoa
E minha dor e os meus olhos rasos d'água" Nelson Cavaquinho


domingo, 3 de junho de 2012

Andorinha

Você me dói como um amor não vivido, como uma carta rasgada que eu nunca enviei,
me dói como o nascer do sol, como o medo de mar.
Você me dói como um desejo negado, como um sonho irrealizável.
Você me dói e sabe, você me dói e fica, e cura, me dói e eu sorrio ainda.
Você me dói quando não vem e quando me visita.
Você me dói como fim de romance, como chocolate perdido.
Você me dói das palpitações aos espasmos.
Você me dói como esquecer.